As mobilizações que sacodem o Brasil já se constituem na maior onda de luta desde as “Diretas Já”. As
lições deste movimento certamente não serão decodificadas de imediato. Mas uma coisa é fato: o Brasil
não é mais o mesmo. Estudar essa realidade é urgente a todos que intervimos na luta de classes. Não há
segurança de que poderemos compreender todos os meandros dessa realidade, mas não há como nos
furtarmos de tentar compreender a mensagem que vem das ruas. Esse texto é apenas mais uma dessas
tentativas.
1 – O processo que vivemos no Brasil é uma expressão da crise do capitalismo mundial. A crise na
Turquia, no Oriente Médio e na Europa (especialmente na Síria e na Espanha) são ainda ecos da grande
crise de 2008 que se iniciou no seio mesmo da maior potência imperialista que a história já conheceu: os
Estados unidos da América;
2 – A mobilização assumiu rapidamente um caráter nacional. Entre os dias 17 e 21 seguramente mais de
cem cidades, incluindo aí todas as capitais, realizaram pelo menos uma grande manifestação. A maioria
realizou pelo menos duas e São Paulo viveu um calendário frenético que incluiu nada menos que sete
grandes atos em menos de duas semanas;
3 – Esta verdadeira comoção nacional mobilizou algo em torno de 2 milhões de manifestantes,
principalmente entre os dias 17 e 21 de junho, confirmando o caráter nacional e multitudinário das
manifestações;
4 – A mobilização, que começou como um protesto contra o aumento das tarifas nos transportes coletivos
(ônibus, trens e metrô), rapidamente pautou os principais problemas sociais do país: corrupção, PEC-37,
homofobia, obras milionárias da Copa (que já extrapolaram os R$ 28 bilhões), péssimas condições de
saúde e educação se popularizaram em cartazes, faixas e palavras de ordem na voz de milhares de
brasileiros;
5 – A princípio a imprensa e os governos (federal, estaduais e municipais) trataram de desqualificar o
movimento caracterizando-o de “vândalo” e “minoritário”. Encastelados em sua costumeira arrogância
vimos imprensa e governantes afirmarem que era “impossível” reduzir as tarifas e que as manifestações
seriam reprimidas com a devida truculência. E assim foi. As primeiras manifestações foram violentamente
reprimidas. Uma violência que atingiu não apenas os supostos “vândalos”, mas manifestantes e jornalistas,
evidenciando que se tratou de uma repressão generalizada;
6 – A partir do dia 17 de junho a coisa começou a virar. Manifestações simultâneas em diversas capitais
brasileiras levaram milhares às ruas. É a partir desta data que o governo e a imprensa mudam o discurso.
Já não se tratam apenas de “vândalos”, mas de manifestantes que estão exercendo o direito democrático de lutar por um Brasil melhor. A própria polícia recua e muda o comportamento passando a supostamente
“proteger” os manifestantes.
7 – No dia 19 de junho, com expressões de derrota no rosto, Geraldo Alckmim e Fernando Haddad,
Eduardo Paes e Antonio Anastasia concedem patéticas entrevistas, informando que estavam revogando o
aumento das tarifas. Até a noite do dia 19 mais de 50 cidades já haviam reduzido suas tarifas, incluindo 14
capitais. Dilma, igualmente patética, resolve falar e afirma que “o Brasil acordou mais forte”. Parece já
não mais se opor aos protestos, mas apoiá-los. Era tarde demais. O movimento já não mais se restringia à
questão da tarifa. Tanto é assim que no Rio de Janeiro, após a redução da tarifa, ocorre a maior
manifestação até agora. Foram perto de 400 mil pessoas nas ruas comemorando, mas exigindo a pauta
máxima que inclui políticas públicas;
8 – Estas manifestações apresentam importantes novidades. A primeira delas é que as redes sociais foram
amplamente utilizadas como instrumento de mobilização. A convocação, que se mostrou bastante
eficiente, dispensou os métodos tradicionais a que estamos acostumados. Não foram confeccionados
panfletos, boletins e tampouco foram usados os famosos “carros-som”. Os cartazes improvisados eram
confeccionados na hora da passeata. Fotos e vídeos das manifestações são disponibilizados em “real time”
pela internet, potencializando o caráter nacional dos atos. Aliás, outra importante novidade foi a
solidariedade internacional e a manifestação de brasileiros espalhados pelo mundo. Houve atos em mais
de 50 cidades pelo mundo afora. Duas mil pessoas em Dublin (Irlanda) e mais de 1,5 mil em Londres
(Reino Unido). Por último, outra coisa inusitada é a duração das manifestações. O horário de
concentração, que em geral era pela manhã, se transferiu para o fim da tarde e não raro os atos duram até a
meia noite. Várias manifestações duraram mais de seis, sete horas, demonstrando vigor e resistência;
9 – Essa poderosa onda já sofreu importantes metamorfoses desde que surgiu. A luta, antes
prioritariamente econômica, agora é abertamente política. Não é mais uma mobilização contra um ou
outro ato do governo, é uma reação vigorosa contra o que os governos têm deixado de fazer: investir em
saúde, educação e transporte. Ao mesmo tempo é um grito contra a corrupção e a impunidade. Dilma
apostou que ficaria incólume. Mais uma vez errou fragorosamente. As mobilizações do dia 20 de junho
tinham um alvo claro: o poder constituído. As passeatas se dirigiram às sedes dos poderes municipais,
estaduais, contra o poder legislativo e executivo federal. Brasília tremeu até quase a meia noite. Partidos,
políticos, ministros e mesmo a presidente ficaram escondidos embaixo de suas mesas, inertes e
impotentes. É bem possível que Dilma mude de novo seu discurso e passe a criticar o movimento. Aliás,
uma outra consequência iminente é o fortalecimento da candidatura de Lula em 2014, fato reforçado pela
crescente queda de popularidade da presidente petista;
10 – Toda violência é vandalismo? Não creio. E essa é uma discussão importante. Uma mobilização tão
multitudinária sempre traz o risco de infiltrações. As cenas de saque e depredações são exemplos de
vandalismo. Lojas assaltadas, eletrodomésticos roubados, celulares furtados não fazem parte da nossa luta.
Mas a contra-violência (para usar uma expressão leninista) é um recurso válido. Não podemos colocar no
mesmo patamar um saque a uma banca de jornais e o enfrentamento à violência policial. Até mesmo a
invasão de uma prefeitura ou assembleia legislativa pode ter um conteúdo político progressivo. Afinal
estamos questionando os centros do poder. Não estou com isso defendendo a depredação de prédios
públicos, mas ocupar os paços do poder não é, aprioristicamente, um ato a ser repudiado. Tudo depende de cada caso concreto;
11 – Estas manifestações tem caráter fascista? O que explica a repulsa aos partidos políticos? Os
anarquistas dirigem o movimento? Essa realidade precisa ser melhor compreendida. Há anos temos falado
que as instituições brasileiras estão apodrecidas. Partidos, casas legislativas e poderes executivos
patrocinam e sobrevivem de corrupção, fisiologismo, impunidade e uso indevido de dinheiro público. A
panela de pressão vinha há muito aumentando a temperatura. Uma hora a coisa ia explodir. Essa hora é
agora. É inegável que há um sentimento retrógrado em curso que rejeita a participação dos “partidos” e
dos “políticos” em geral. A presença das bandeiras é ojerizada assim como a presença de parlamentares.
Esse fato é dialeticamente contraditório. Se por uma lado é nefasto, pois discrimina a presença de muitos
representantes legítimos, por outro expressa um sentimento progressivo de rejeição aos partidos da
burguesia e ao PT, que materializam a corrupção em nosso país. O PT, além disso, representa a traição
daqueles que chegaram ao poder, a prostituição da política e a frustação de um sonho de mudança. É até
certo ponto natural que o PSOL (bem como o PSTU, o PCB e o PCdoB) seja identificado com os outros.
Isso só comprova o fato, que muitos de nós ainda não compreendeu, de que somos pequenos. Que não
conseguimos passar nossa mensagem para a maioria de nosso povo. Evidente que há setores de direita
infiltrados que fazem coro ao discurso apartidário e apolítico, mas é preciso compreender que há algo mais
profundo que a simples manipulação de uma massa de ingênuos. Essas manifestações são, em sua maioria,
explosões espontâneas de revolta popular, principalmente da juventude. Não há uma direção única que
seja reconhecida e aceita por todos. É uma massa multifacetada e sem uma perspectiva definida. Um certo 7
anarquismo e espontaneismo são característicos desse movimento, o que prejudica bastante a definição
dos próximos passos e identidade política do movimento;
12 – Somos a favor que esse movimento (e os similares) seja apartidário. Mas isso não significa impedir a
legítima participação dos partidos políticos. Muito menos significa aceitar a despolitização de seus rumos.
Não fazer “política” é a maneira mais nefasta de fazer política. Há partidos e partidos, e fazer essa
distinção é uma tarefa do PSOL e de todos os seus militantes. Abdicar desse debate e se submeter a esse
sentimento atrasado e pernicioso (como fizeram algumas correntes do PSOL) é um crime. Precisamos
disputar os rumos desse movimento.
A maioria dos participantes não quer ser de “esquerda” ou de “direita”, mas objetivamente sua luta é
contra o sistema. Logo há um espaço concreto para nossa política, basta que tenhamos sensibilidade de
fazer esse debate de forma inteligente. É contraproducente fazer o enfrentamento despolitizado do tema.
Levar mil bandeiras vai soar como uma provocação e, pior, vai desviar o foco da luta. Em vez de
enfrentarmos os governos, alimentaremos, de forma infantil, a luta intestina. Em vez de enfrentarmos,
incentivaremos o preconceito aos partidos. Achar um ponto de equilíbrio entre combater o apartidarismo e
entender a dinâmica do movimento é imprescindível;
13 – Esse movimento altera a relação entre as classes no Brasil? Abala o Regime Democrático-Burguês
vigente? É cedo ainda para respostas cabais. Mas é fato que o Brasil não é mais o mesmo de duas semanas
atrás. Creio que não se trata apenas de uma reação ou de uma resposta, mas de uma ofensiva que surtiu
efeito na medida em que logrou êxitos econômicos e na medida em que deixou os governos na defensiva.
Esse processo não começou hoje. Pelo menos desde 2009, passando por um incremento em 2011 e
principalmente 2012, já víamos sinais de avanço com a recuperação do ânimo de luta de diversas
categorias. Mas, nada que se compare aos atos desse período. Mesmo que o movimento retroceda a partir
de agora, vai impor mudanças profundas no fazer político brasileiro. As instituições que sustentam o
regime (partidos, congresso nacional, governos e presidência da república) estão profundamente abaladas.
Só o desenvolvimento ulterior da luta de classes vai responder de forma mais definitiva a estes
questionamentos. Mas é indiscutível que não foi o Brasil que “acordou mais forte”, foi o povo. E fez isso
na medida em que enfraqueceu as instituições burguesas;
14 – As cartas estão na mesa e os dados ainda estão rolando. A vitória parcial (redução das tarifas) ainda
não arrefeceu os ânimos. Pode ser que as manifestações tenham atingido seu ponto máximo e comecem a
retroceder. Se assim for já terão cumprido sua missão histórica. Mas pode ser que o processo ainda
continue em ascensão, em progressão geométrica como foi até agora. Resta acompanharmos o
desenvolvimento dos rumos da luta. A falta de uma direção política favorece a atomização do movimento
e sua provável diluição, mas mesmo que isso aconteça algo já terá mudado. O principal é que o povo
percebeu que é possível vencer. Que não há governo que resista à força das mobilizações. A patética
paralisia dos governos e dos poderes legislativos é inversamente proporcional à dinâmica que vem das
ruas. Qualquer governo, por mais democrático que seja, jamais substituirá o povo. A democracia
“representativa” expõe suas limitações. Canais diretos precisam ser criados. Essas mudanças tem um
conteúdo político e cultural e não terão sido em vão.
15 – Entre os dias 17 e 21 de junho dezenas de cidades brasileiras (as mais populosas e importantes)
realizaram manifestações com milhares de participantes. Segue a lista de algumas destas cidades: Manaus,
Rio Branco, Macapá, Porto Velho, Belém, Castanhal, São Luís, Paço do Lumiar, Teresina, Palmas,
Araguaína, Fortaleza, Sobral, Natal, Parnamirim, João Pessoa, Campina Grande, Nazaré da Mata, Recife,
Caruaru, Garanhuns, Maceió, Aracaju, Petrolina, Juazeiro, Paulo Afonso, Salvador, Amargosa, Jequié,
Ipiaú, Porto Seguro, Goiânia, Brasília, Várzea Grande, Campo Grande, Dourados, Cuiabá, Pedro Juan
Caballero, Uberlândia, Uberaba, Belo Horizonte, Contagem, Betim, Juiz de Fora, Varginha, Alfenas, Vila
Velha, Vitória, Rio de Janeiro, Niterói, Duque de Caxias, Angra dos Reis, Resende, São Gonçalo, Itaboraí,
Araruama, Saquarema, Itajubá, Poços de Caldas, Sertãozinho, Franca, Aparecida do Norte, Araraquara,
Ribeirão Preto, São Carlos, Piracicaba, Guaratinguetá, São José dos Campos, Campinas, Guarulhos,
Diadema, São Paulo, Bauru, Botucatu, Salto, Taubaté, Cubatão, Santos, Guarujá, Osasco, Vargem Grande
Paulista, Arapoti, Londrina, Maringá, Curitiba, Ponta Grossa, Cascavel, Cidade de Leste, Joinville, 8
Jaraguá do Sul, Blumenau, Balneário Camboriú, Florianópolis, Araranguá, Lage, Passo Fundo, Caxias do
Sul, Porto Alegre, Pelotas, Rio Grande, Santa Cruz do Sul, entre outras.Artigo escrito por Fernando Carneiro, militante do PSOL/PA.
Fonte: FENASPS